Mulheres negras por elas mesmas
por Rosângela Praxedes
O ponto de vista das mulheres sobre as suas circunstâncias quase nunca está plenamente representado na literatura. Quando pensamos nas representações sobre as mulheres negras e suas realidades específicas na sociedade brasileira, então, é fácil percebermos como as identidades estão diluídas nas representações dominantes construídas sobre as “mulheres” em geral.
Em muitos textos considerados clássicos, as mulheres negras aparecem para servir a mesa e a cama, arrumar a casa e desaparecem. Essas representações estão amplamente difundidas, mas nenhum texto as sintetizam melhor, ou pior, do que “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, por expressar as narrativas dos senhores de escravos que combinam opressão colonial racista com submissão patriarcal. As histórias que envolvem mulheres negras ocorrem em ambientes das classes abastadas, protagonizadas pelos proprietários e proprietárias quase nunca negros, nunca mulheres negras.
Vou tratar neste pequeno ensaio de dois livros que estão na contramão das narrativas que mencionei acima, pois expressam de modo próprio a voz subalterna e feminina. Os dois livros foram encontrados por mim em situações que traduzem bem aquele tipo de situação que a escritora Ana Maria Gonçalves chama de serendipidade: uma palavra “usada para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados”.[AOZ1]
Estava na livraria procurando um livro infantil para meu filho, quando me deparei na estante de obras destinadas ao público infanto-juvenil, com o título “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus. Título e autora cujos nomes me soam familiares desde a minha infância, mas que não sei bem porque ainda não havia lido. O livro foi publicado pela primeira vez em 1960, depois do manuscrito e a autora terem sido descobertos pelo jornalista Audálio Dantas, enquanto este fazia uma reportagem sobre a favela do Canindé, nas margens do rio Tietê, na cidade de São Paulo. Comprei o livro, mesmo sem encontrar um título adequado ao meu filho. Li naquele mesmo dia o “Quarto de Despejo”. Fiquei impressionada com a intensidade do relato daquela mulher negra e favelada, subalternizada pelas relações de exploração econômica, somadas às chamadas assimetrias de gênero, vítima do racismo e da exclusão social e cultural. Ao mesmo tempo fiquei triste por saber que as situações descritas naquele livro, muito longe de terem acabado, definem as condições de vida de inúmeras outras Carolinas, passadas já quase cinco décadas do lançamento do livro.
Carolina é uma mulher que procura manter sua integridade em meio à miséria proporcionada aos pobres, negros e índios na sociedade de consumo. Neste livro ela relata a miséria em seu cotidiano de catadora de papel na rica cidade de São Paulo. Seus relatos nos remetem à vida difícil da moradia improvisada, da fome, das doenças, das mortes, mas trazem também a ternura pelos filhos, a busca da dignidade, o amor pelos homens, o sonho de ser escritora, o amor à vida. Tudo isso expresso com a voz própria que construiu inspirada pela sua visão informada pela consciência de gênero e da discriminação racial de que era vítima. Podemos depreender esta consciência em uma passagem singela do seu relato em que ela associa a dificuldade para garantir a alimentação para a sua família com a exploração econômica que trata gente e gado, simplesmente como mercadorias. Leiamos o seu relato:
23 de junho... Passei no açougue para comprar meio quilo de carne para bife. Os preços eram 24 e 28. Fiquei nervosa com a diferença de preços. O açougueiro explicou que o filé é mais caro. Pensei na desventura da vaca, a escrava do homem. Que passa existência no mato, se alimenta com vegetais, gosta de sal mas o homem não dá porque custa caro. Depois de morta é dividida. Tabelada e selecionada. E morre quando o homem quer. Em vida dá dinheiro ao homem. E morta enriquece o homem. Enfim, o mundo é como branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações”. (p. 63)
A mulher negra e pobre ergue a sua voz para denunciar a opressão promovida por aquele que comanda a circulação das mercadorias, a exploração econômica e a opressão de gênero e de raça: o homem branco proprietário
Mais serendipidade. Ainda estava com este livro na cabeça quando encontrei um amigo que não via há tempos, o José Apóstolo, também colunista deste Espaço Acadêmico. Ele, sempre preocupado em “salvar o mundo”, me disse que estava pensando em participar de um projeto de implementação de políticas culturais na periferia de São Paulo. A conversa se voltou ao “Quarto de Despejo”, e depois de ler e se sensibilizar com o livro e a sua indiscutível atualidade surgiu-lhe a idéia de montar na periferia uma biblioteca de autores afro-brasileiros. Passamos a imaginar a biblioteca que seria implementada em algum daqueles bairros, com pouca infra-estrutura de lazer e de habitação, distante do centro financeiro e político da cidade e que certos cientistas sociais e jornalistas denominam como “cidades dormitórios”, bairros em que os adultos e os que têm idade para trabalhar e emprego, deixam de manhã e voltam só à noite para dormir. Dando um salto neste relato, a biblioteca não é mais simplesmente uma idéia, um sonho ou um projeto. Já existe, o bairro é o nada sonolento Cidade Tiradentes, na Zona Leste da capital paulista, e o nome não poderia ser outro, é “Biblioteca Carolina de Jesus”. Quem sabe os livros possam colaborar para que as tantas Carolinas desse bairro encontrem referências na literatura e resolvam resgatar a sua voz contra a subalternidade e as conseqüências nefastas das condições precárias de sobrevivência que o mundo atual lhes apresentam.
Mas tudo isso me veio à lembrança depois de encontrar um outro livro, de novo sem que eu o estivesse procurando, e veio pelas mãos de uma pessoa muito especial. Ele me convidou para uma sessão de cinema no shopping. Aceitei com peso na consciência afinal estava lotada de trabalho, mas estava precisando de distração, havia dias que não saía de casa. Grande decepção, a sessão do filme escolhido estava lotada, os outros filmes não valiam a pena. Pensamos em comprar ingressos para a próxima sessão, mas fomos até a livraria tomar um café, idéia que partiu dele e que não gostei, pois a última coisa que queria ver naquele momento eram livros, novos livros. Estava vivendo dia e noite rodeada por livros, que precisava consultar para encerrar vários relatórios de trabalho e para finalizar a minha pesquisa de mestrado. Cada vez que ia a uma livraria me ocorria a sensação angustiante de que nunca conseguiria terminar de ler toda a literatura necessária à minha pesquisa, a cada dia surgindo novos títulos importantes. Mas para não ser deselegante com homem tão bonito, educado e gentil, fomos à livraria.
Logo na entrada, nas gôndolas de lançamentos, um livro parecia que me chamava, parecia ter umas mil páginas, tinha uma capa bem bonita. Realmente eu não queria ver livros, mas não tinha mais jeito, eu já estava interessada naquele, fomos para o café, e enquanto conversávamos acompanhados do meu chocolate quente e do favorito dele, café expresso com creme, fui folheando aquela obra que já me fascinara.
De novo uma escritora, Ana Maria Gonçalves, uma mulher negra, contando a história de outra mulher, outra mulher negra. A habilidade com as palavras, a sensibilidade para falar das tragédias humanas, a história de Kehinde. O livro é “Um Defeito de Cor”, e narra a trajetória de Kehinde/Luísa, uma africana que chegou ainda criança, como escrava em terras brasileiras. É uma narrativa construída por uma jovem e mais que talentosa escritora, que revela os relatos de Kehinde, seu cotidiano, a vida vista a partir da Senzala e não da Casa Grande, a partir dos olhos de uma menina, de uma mulher, e não a partir do ponto de vista masculino ou do ponto de vista de um homem.
Além da narrativa instigante, foi nestes dois sentidos, o de gênero e o de situação social, que este livro me “encantou”, e esta é a melhor palavra para definir a minha relação com esta obra inigualável, porque desde que o tomei nas mãos, sempre arrumo tempo para ler algumas de suas 952 páginas e penso como foi bom aceitar o convite para ir ao cinema. A história das mulheres negras em nosso país ainda está para ser contada em romances, em teses, em novelas, em canções. Há muito o que escrever sobre uma sociedade racista e sexista, que destina à mulher negra as piores condições sociais. Desde a escravidão nossas ancestrais desempenharam a função da “mãe-preta” que muitas vezes era obrigada a abandonar seus próprios filhos para alimentar e cuidar dos filhos dos escravocratas. Essa situação não é muito diferente atualmente, se considerarmos tantas e tantas mulheres negras que passam o dia cuidando de crianças de suas patroas, enquanto seus filhos ficam sozinhos em casa, expostos a inúmeros riscos. Sem contar o tratamento dado à mulher negra, como portadora de um corpo dotado de uma sexualidade exótica, que é ensinado por uma ideologia racista que representa a pessoa negra como selvagem, situada em uma posição inferior na escala evolutiva em relação aos brancos e mais próxima da natureza animalesca.
Mas estas circunstâncias adversas não nos inspiram atitudes lamentativas e de vitimização. Pelo contrário, o contexto social e cultural de formação das mulheres negras nos proporciona a necessidade de atitudes não contemplativas. Apesar desta situação injusta e não condizente com uma sociedade democrática, lutamos contra a identificação das mulheres aos estereótipos de submissão e dependência associadas à figura feminina pelo imaginário machista e patriarcal. Como nos ensina a professora norte americana Bell Hooks, a “educação para a conscientização crítica pode fundamentalmente alterar nossas percepções da realidade e de nossas ações.”
Agora, quando a nossa história e as circunstâncias em que vivemos são narradas com voz própria por grandes escritoras como Carolina Maria de Jesus e Ana Maria Gonçalves, ah!, então, me chega o contentamento de fazer parte deste universo, de ter crescido e convivido com tantas culturas, e de sentir que todos têm histórias dignas de serem narradas.
Todos nós, mulheres e homens, negros e não negros, temos muito que aprender se nos voltamos a ouvir e a ler os relatos de resistência, de amores, de lutas contadas pelos povos que aqui viveram sofrendo, mas sobretudo resistindo à opressão econômica, racista e sexista.
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