Por Cláudia Santos**
Geralmente quando se menciona o conto de fadas em que a princesa beija o sapo, relembramos as lições de moral dessa literatura. No caso desse conto, que surgiu escrito pela primeira vez 1810, em anotações dos Irmãos Grimm, vem a perspectiva de ensinar que é preciso cumprir as promessas ainda que a jura seja feita a um sapo.
Prometeu receber o sapo em sua casa e deixar que ele coma com você no seu prato uma sopa quentinha em troca da ajuda para resgatar sua bola de ouro do fundo do lago? Por mais asqueroso tudo possa parecer, nada de fugir e bater a porta. Cumpra a promessa. Mostre que sua palavra tem valor. Assim fez a princesa obediente a orientação do rei-pai. Essa é a moral que a narrativa compilada da tradição oral pelos Irmãos Grimm quer nos comunicar.
Nessa mesma versão dos Grimm a jovem princesa chega ao limite ao ver o sapo se preparando para dormir em sua cama real. Numa reação bem violenta, a moça atira o sapo contra uma parede. É a mistura da inusitada demonstração de ferocidade seguida do choque contra o muro que faz tudo mudar: quebra o feitiço do príncipe e liberta a princesa da jura. Tudo vira um lindo e rico casamento, onde os dois nobres serão felizes para sempre.
Eu imagino que vocês já ouviram essa versão. Talvez as que são professoras também já tenham escutado e possivelmente contam a história desse jeito. Talvez prefiram aquela versão ligeiramente diferente em que a princesa, cheia de virtudes, beija o sapo e ele logo se torna um galante príncipe.
Peço a vocês perdão pela repetição de uma narrativa que vocês já conhecem. Mas isso será útil caso você se arrisque a assistir com ou sem crianças, a título de divertimento, ao mais recente lançamento dos Estúdios Disney. Será útil também se você for educadora daquelas que por força do exercício profissional pensa em levar “A Princesa e O Sapo” para a escola como uma novidade nesse início de ano letivo imaginando que exibir o filme é uma forma de colaborar para uma educação antirracista. Vale também para as que organizam cineclubes. Tem validade ainda para quem é ativista e busca animações, documentários e vídeos pra motivar discussões sobre raça e gênero.
Digo isso por que esses foram os motivos que me levaram ao cinema para assistir a esse filme. Acompanhei, desde ano passado, a publicidade em torno de “A Princesa e O Sapo”. Sonhei que com essa animação, baseada no conto dos Irmãos Grimm, teríamos aquilo que muitos de nós, militantes de movimentos negros, chamamos de “direito à normalidade”. Isso é algo que podemos ver no seriado norte-americano “My Wife and Kids”, no Brasil rebatizado de “Eu, a patroa e as crianças”. A série é um exemplo do gênero sitcom, a abreviatura da expressão em inglês situation comedy ou comédia de costumes em português.
Como muitas das pessoas que conheço e assistem ao seriado, sou fã do belo Damon Wayans, ator que interpreta Michael Richard Kyle, personagem que na série é casado com Janet Marie, interpretada por Tisha Campbell Martin. Conheço outras pessoas que assistem ao seriado por este ser um raro exemplo em que é facil se identificar com o humor estrangeiro. Sempre que vejo o seriado penso que as experiências do casal e seus filhos são uma éspecie de “direito à normalidade”. Os personagens têm consciência racial, refletem sobre isso, se posicionam a partir desse lugar em que a negritude importa como experiência, mas a série é antes de tudo comédia. Uma comédia em que ser negro é normal.
Há, entre os que discutem comigo esse “direito à normalidade”, alguns a dizer que a família do seriado “Eu, a patroa e as crianças” tem dinheiro e esse elemento é que garante o direito à normalidade. Sigo no debate discordando por que esse direito também está presente em outros seriados, já fora do ar nos EUA mas com uma audiência regular no Brasil, a exemplo de “Todo mundo odeia Chris” e nesse caso a família é bastante pobre.
“A princesa e o sapo” dos Estúdios Disney nem nos permite debater sobre o nosso “direito à normalidade”. O modo como a narrativa está estruturada nos rouba essa chance já de início. Não entramos na narrativa dos Irmãos Grimm em 1810, naquela época ainda estávamos ocupados em provar nossa humanidade, em consolidar nossa entrada na sociedade. Em 2010, 200 anos depois, já provamos nossa humanidade, mas ainda temos muito que resistir, brigar por uma forma de representação que não nos menospreze.
A publicidade do site oficial não apresenta o filme como uma fábula ou conto de fadas, mas sim como uma comédia romântica e musical. Nem uma palavra sobre o histórico fato de a princesa ser a primeira negra ao longo dos 87 anos de existência da companhia fundada em 16 de Outubro de 1923 pelos irmãos Walt e Roy Disney.
Anika Noni Rose, que interpreta a voz de Tiana, a princesa negra, acreditou que dublar a personagem já seria garantia de imortalidade. A cantora e atriz de 34 anos, que entre nós tornou-se mais conhecida como a terceira componente do grupo de cantoras negras no filme “The Dreamgirls” foi eleita pelos estúdios Disney numa disputa que envolveu nomes de peso como Alicia Keys, Jennifer Hudson, Beyoncé Knowles e Tyra Banks.
No Brasil, para Kacau Gomes que já havia dublado Mulan, o trabalho teve um sentindo bem diferente. Em entrevista ao site de notícias “Extra – Online” do grupo Globo.com ela disse que “Tiana é a primeira princesa negra da Disney. E sou uma mistura bem brasileira com mãe negra e pai branco. Eu me sinto uma privilegiada por fazer esse trabalho, não podia pedir mais. E qual mulher não sonhou ser uma princesa? — empolga-se.”
Na mesma entrevista ela explica o processo de seleção: “E foi graças a um amigo que ela conseguiu a empreitada. — Ele tinha visto o trailer nos Estados Unidos e disse que a personagem tinha que ter a minha voz. Liguei para o Garcia Jr., diretor da Disney no Brasil, com quem já trabalhei, e perguntei sobre a dublagem. Dois meses depois ele me ligou dizendo que realmente Tiana tinha a minha cara e que eu iria fazê-la — conta.”
Tudo isso foi pouquíssimo divulgado pela mídia brasileira, assim como um outro dado interessante foi desvalorizado na publicidade local: Oprah Winfrey, negra comunicadora e milionária, uma das mais fortes defensoras da candidatura e cabo eleitoral de Obama, interpretar a personagem Eudora, mãe da princesa Tiana. Mais que isso, no Brasil, nenhuma atriz ou ator negro serão imortalizados por emprestar a voz a um personagem. Nao é possível juntar consciência racial e atuação no cinema.
Responsável pelo roteiro, o escritor negro Rob Edwards(1) afirmou que os principais valores do filme são a presença dos melhores profissionais em animação disponíveis no mercado, a qualidade excepcional dos números musicais e os personagens que podem ser identificados com pessoas comuns. Edwards diz imaginar que um casal pode estar assistindo ao filme e quem sabe a esposa não cutuca o braço do marido e diz que um personagem se parece com ele.
O roteirista também declarou que preferiu não se fixar tanto na expectativa de estar preparando algo de valor monumental e se concentrar na idéia de contar uma história honesta cujo enredo gira em torno de duas pessoas especiais, que se encontram e se apaixonam. “Eu queria uma história que pudesse ser contada aos meus amigos e meus amigos pudessem contar essa história aos seus filhos e filhas”.
Foi isso que disse Edwards na entrevista, esse é o limite do seu desejo. Edwards deveria ter previsto que quando as duas pessoas especiais são não-brancas a história envolve mais que paixão. O enredo passa a ter também percepções sobre as relações étnico-raciais e as zonas em que isso se acirra, como ancestralidade e religiosidade. Nesse caso, Edwards repetiu clichês de marginal e mãe preta ou preta velha na construção dos personagens, basta observar dois deles, o Dr. Facilier e Mama Odie.
Concordo com Rob Edwards que a qualidade técnica do filme é irretocável. E, ao que parece, isso não dependia dele. Acredito até que ele seja um roteirista talentoso, saiba narrar bem uma história. Mas ao final, de algum modo, sua estrela forte, capaz de brilhar a ponto de levá-lo ao maior e melhor estúdio de animação do mundo e dos nossos sonhos, deve ter sido momentaneamente apagada e sucumbiu ao racismo na hora de produzir o roteiro de “A princesa e o sapo”.
Tiana, a principal personagem, não tem sobrenome. Seu pai morre cedo e de herança lhe deixa a crença de que se trabalhar duro é possível conseguir tudo que se deseja na vida. Eudora, sua mãe, é costureira sem atelier próprio, executora de vestidos de princesa para meninas brancas ricas e está sempre lá para apoiá-la e lembrá-la dos ensinamentos do falecido pai.
A família negra não tem sobrenome e muitos menos nobreza. Tiana cresce freqüentando as casas ricas em que a mãe vai atender a clientes como a família branca La Bouff onde fará uma duradoura amizade com Charlote. Desde a infância as meninas mostram suas diferenças, não só as étnico-raciais mas também as de personalidade. Tiana é trabalhadora e não princesa. Divide seu tempo no trabalho de garçonete em três lugares diferentes! Por cobiçar ascensão sócio-economica, Tiana beija um sapo. A personagem acreditava que se livrasse o príncipe do feitiço ganharia o que precisava em dinheiro para abrir seu próprio restaurante.
A presença das mulheres negras no filme está bem marcada e subjugada a uma forte hierarquia racial. É um padrão contra o qual lutamos desde o início do século passado. Nós mulheres negras estamos em rota de saída desse lugar tão subalterno como única alternativa. Se você assistir o filme será impossível não notar que a jovem negra conta só com a mãe, não tem dinheiro. Tiana passa a maior parte do filme labutando até a exaustão na sua própria pele ou na pele do sapo em que se transforma ao beijar o príncipe.
A adaptação do conto de fadas viola o direito à normalidade de jovens negras. Esse tipo de narrativa que pouco sofre mutações, ainda que principalmente submetidas à regra da oralidade, mas no caso de “A princesa e o sapo” a transgressão é brusca. De um lado, a jovem branca tem pai, dinheiro e herança, tem círculos de amizade, promove festas e banquetes para atrair príncipes ao tempo em que desfila coleções de vestidos.
De outro lado, a negra se torna princesa pelo casamento com um príncipe de caráter duvidoso, ela própria terá de ensiná-lo sobre ética, moral e, pasmem, gerenciamento financeiro. A branca se torna princesa porque o pai é rei do carnaval, ainda que sob a insinuação de um certo favorecimento político, já que ele é eleito 8 vezes seguidas por falta de candidatos em Nova Orleans, onde se passa a narrativa.
Ao fim da narrativa a jovem negra segue reinando como cozinheira famosa em seu restaurante, que fica dentro do castelo, única recompensa que lhe aguarda. Do lado de fora da narrativa os Estúdios Disney licenciam como produto um livro de receitas de Tiana – A princesa culinarista. A branca, ao conhecer o irmão do príncipe, uma criança com não mais que 8 anos, faz planos de casamento e insinua que vai esperar até que ele cresça sem cogitar esforço maior que isso para sua vida além das artimanhas para conquistar um príncipe.
Imagino que vocês devem estar achando interessante a análise que faço sobre esse filme e ao mesmo tempo perguntando se essa problematização pode ajudar no objetivo desse painel, que é apresentar o panorama da comunicação, no que se refere ao racismo, para provocar reflexões sobre estratégias de enfrentamento.
A resposta para essa minha opção não é simples, mas existe e é direta. “A princesa e o sapo” simboliza a condição das negras mulheres diante do panorama da comunicação contemporânea. É essa a reflexão que quero partilhar com vocês, e não seria possível sem uma análise do filme antes.
Nossas listas de comunicação virtual pipocaram de expectativa pelo filme e foi só. Usamos nosso acesso a redes de comunicação para acompanhar lançamentos, festejar nossa presença no cinema, mas enquanto negros e negras em movimentos diversos não conseguimos dialogar amplamente sobre o resultado que o filme tem em nós e na educação das crianças nossas ou não. Percebemos a comunicação como um segmento estratégico, mas ainda não conseguimos intervir como desejamos e gostaríamos.
Não acredito que com o filme rompemos com os dilemas da invisibilidade, antiga e grave questão no âmbito da comunicação e da educação, porque no filme as pessoas negras são representadas numa condição inferior, apenas por serem negras. A representação está ligada diretamente à possibilidade de existir. Se não pudemos nos ver como somos não existimos.
Perceber os dilemas expressados pelos afro-americanos envolvidos no processo de produção do filme é difícil, requer um monitoramento de mídia. Esse monitoramento é fundamental para o rompimento da invisibilidade, é estratégico no âmbito de uma disputa que envolve a nossa existência e nossas relações na diáspora. Isso implica em capitalizar politicamente conquistas coletivas, desde a influenciar os grandes estúdios a produzir filmes sobre nossa vida, nosso direito não apenas à normalidade, mas à imortalidade. Não existiremos e nem seremos representados com a consciência racial que desenvolvemos se não tomarmos isso como nossa tarefa.
Precisamos nos fortalecer para trabalhar com as questões de comunicação a partir desse ângulo de pessoas negras. Enquanto professora de educação básica, formadora de professores no CEAFRO, pesquisadora dessa relação entre comunicação, educação e identidade étnico-racial e ainda produtora de informação pela via da imprensa negra no IROHIN percebo o crescimento das recentes teorias e práticas relacionadas a uma pedagogia da comunicação, educomunicação ou mesmo mídia-educação, que favorecem uma suposta leitura crítica dos meios.
Esses termos usados para caracterizar área interdisciplinar do conhecimento, considerada nova nos estudos acadêmicos e voltada para desenvolver formas de ensinar e aprender sobre certos aspectos dos meios de comunicação na sociedade, não dão conta de nossa existência, não dão conta da consciência racial e dos modos de representação e das ações didáticas que produzimos para educar a sociedade brasileira.
Os que tentam nos educar desconhecem nosso processo de educação. Não entendem que nossa disputa é por uma teoria do conhecimento que não nos apague. Desejamos sim a compreensão crítica da sociedade e a participação ativa das pessoas negras no processo de educação. Mas queremos isso marcando a nossa existência, sem ter que forçosamente embranquecer, fortalecendo nossa identidade, celebrando nossa ancestralidade, consolidando nossa resistência.
As criança negras do século XXI, suas famílias, suas comunidades e seus educadores não precisam de narrativas que as tornem nobres nos moldes eurocêntricos. O que falta é conhecer nossa experiência coletiva de afirmação identitária na diáspora, que também passa pela produção audiovisual autoral para educação e pela imprensa negra. Não desejamos uma inclusão como apêndices ou meros apelos comerciais, candidatos ao consumo. Queremos ter e veicular nossa própria produção.
O que tenho de melhor para compartilhar com vocês a partir das experiências desenvolvidas no âmbito do CEAFRO e do IROHIN é isso: uma experiência autoral com o que nela há de exercício de democracia e de filiação à imprensa negra que me leva a entender que nossa educação é comunicação; nossa comunicação é educação.
*Palestra proferida no Seminário Mulheres Negras Nordestinas no Combate à Discriminação Racial na Mídia. Recife, 19/03/2010.**Professora, atua no JORNAL IROHIN (www.irohin.org.br) e na formação de professores no CEAFRO/CEAO/UFBA, doutoranda em Língua e Cultura (PPGLL/ UFBA). klaudiasantos8@yahoo.com
Fonte: Aruanda Mundi
por: Jú Balduino
Coletivo Cultural Esperança Garcia
Nenhum comentário:
Postar um comentário